quarta-feira, 15 de outubro de 2008

20 ANOS DE NOSSA CONSTITUIÇÃO


A constituição cidadã completa 20 anos de existência. Devemos sim festejar esta carta constitucional que existe há duas décadas trazendo conquistas e fazendo a festa da democracia. Abaixo segue o discurso do Presidente do Congresso e da Assembléia constituinte no dia de sua promulgação: Ulisses Guimarães. Foi uma dia histórico para nosso país.

Discurso de Ulysses Guimarães
"Dois de fevereiro de 1987: Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar. São as palavras constantes do discurso de posse como presidente da Assembléia Nacional Constituinte.
Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto.
Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho. Alguns, a fatalidade derrubou: Virgílio Távora, Alair Ferreira, Fábio Lucena, Antônio Farias e Norberto Schawantes. Pronunciamos seus nomes queridos com saudade e orgulho: cumpriram com o seu dever.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir reforma. Quanto a ela, discordar sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.
Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do Homem, da Liberdade e da Democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina. Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta grande Nação.
A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela não haveria a cruz nem os evangelhos. A Assembléia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com ouro de seus privilégios e especulações.
Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo trajeto das subcomissões à redação final. A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam livremente as onze estradas ao enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.
Ulysses Guimarães recebeu o apelido carinhoso de Senhor Diretas
Como o caramujo, guardará para sempre o oramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio. A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. E sua marca de fábrica. O inimigo mortal do homem é a miséria. Não há pior descriminação do que a miséria. O estado de direito consectário da igualdade não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria.
Tipograficamente é hierarquizada a precedência e a preeminência do homem, colocando no umbral da Constituição e catalogando-lhe o número não superado, só no Artigo 5°, de 77 incisos e 104 dispositivos. Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços, cobráveis inclusive com o mandato de injunção. Tem substância popular e cristã o título que a consagra: "A Constituição Cidadã".
Vivenciando e originários dos estados e municípios os Constituintes haveriam de ser fiéis à Federação. Exemplarmente o foram. No Brasil, desde o Império, o estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: o Estado contra o País, quando o País é a geografia, a base física da Nação, portanto, do Estado.
É elementar: não existe Estado sem País nem País sem a geografia. Esta antinomia é fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipélago social, econômico, ambiental e de costumes, não uma ilha. A civilização e a grandeza do Brasil percorreram rotas centrífugas e não centrípetas.
Os bandeirantes não ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem pitoresca, mas exata, de frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o oeste e para a história, na conquista de um continente. Foi também indômita vocação federativa que inspirou o gênio de Juscelino Kubitschek, que plantou Brasília longe do mar, no coração do sertão, como a capital da interiorização e da integração.
A Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das províncias. Comprimidas pelo centralismo, há o perigo de serem empurradas para a sucessão. É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá na União estado forte, pois fraco é o Brasil.
As necessidades básicas do homem estão nos estados e nos municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las. A Federação é a governabilidade. A governabilidade da Nação passa pela governabilidade dos estados e dos municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto.
A Constituição reabilitou a Federação ao alocar recursos ponderáveis às unidades regionais e locais, bem como a arbitrar competência tributária para lastrear-lhes a independência financeira. Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios.
Se a democracia é o governo da lei, não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são governo o Executivo e o Legislativo. O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos parlamentares contemporâneos. É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário. Eis outro imperativo de governabilidade: a co-participação e a co-responsabilidade.
Ulysses Guimarães no dia da promulgação
Cabe a indagação: instituiu-se no Brasil o tricameralismo ou fortaleceu-se o unicameralismo, com as numerosas e fundamentais atribuições cometidas ao Congresso Nacional? A resposta virá pela boca do povo. Faço votos para que essa regência trina prove bem. Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência, a inépcia.
Soma-se à nossa atividade ordinária, bastante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 ordinárias. Não esquecemos que na ausência de lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandato de injunção. A confiabilidade do Congresso Nacional permite que repita, pois tem pertinência, o slogan: "Vamos votar, vamos votar", que integra o folclore de nossa prática constituinte, reproduzido até em horas de diversão e em programas humorísticos.
Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais. O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo parlamento.
A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que a pretexto de salvá-la a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.
Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da fiscalização, através do mandado de segurança coletiva: do direito de receber informações dos órgãos públicos; da prerrogativa de petição aos poderes públicos, em defesa de direitos contra a ilegalidade ou abuso de poder; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos municípios por parte do contribuinte; podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas junto às comissões das casas do Congresso Nacional; qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são partes legítimas e poderão denunciar irregularidades ou legalidades perante o Tribunal de Contas da União, do Estado ou do Município. A gratuidade facilita a efetividade dessa fiscalização.
A exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação, permite conceituá-la, sinoticamente, com a 'Constituição Cidadã', a 'Constituição Federativa', a 'Constituição Representativa e Participativa', a 'Constituição do Governo Síntese Executivo-Legislativo', a 'Constituição Fiscalizadora'.
Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada até por maioria mais acessível, dentro de cinco anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil e pioneira e desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto País a implantar o instituto moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou não, além de beneficiar onze milhões de aposentados, espoliados em seus proventos. É consagrador o testemunho da ONU de que nenhuma outra Carta no mundo tenha dedicado mais espaço ao meio ambiente do que vamos promulgar.
Ulysses Guimarães presidiu a Assembléia Nacional Constituinte, que vigorou de 1987 a 1988.
Senhor presidente José Sarney: Vossa Excelência cumpriu exemplarmente o compromisso de Tancredo Neves, de Vossa Excelência e da Aliança democrática ao convocar a Assembléia Nacional Constituinte. A Emenda Constitucional n° 26 teve origem em mensagem de seu governo, vinculado Vossa Excelência à efeméride que hoje a Nação celebra. Nossa homenagem ao presidente do Senado, Humberto Lucena, atualmente na Constituinte pelo seu trabalho, seu talento e pela colaboração fraterna da casa que representa. Senhor ministro Rafael Mayer, presidente do Supremo Tribunal Federal. Saúdo o Poder Judiciário na pessoa austera e modelar de Vossa Excelência.
O imperativo de "Muda Brasil", desafio de nossa geração, não se processará sem o conseqüente "Muda Justiça", que se instrumentalizou na Carta Magna com a valiosa contribuição do Poder chefiado por Vossa Excelência. Registro a homogeneidade e o desempenho admirável e solidário de seus altos deveres, por parte dos dignos membros da Mesa Diretora, condôminos imprescindíveis de minha presidência. O relator Bernardo Cabral foi capaz, flexível para o entendimento, mas irremovível nas posições de defesa dos interesses do País. O louvor da Nação aplaudirá sua vida pública.
Os relatores adjuntos, José Fogaça, Konder Reis e Adolfo Oliveira, prestam colaboração unanimemente enaltecida. O Brasil agradece pela minha voz a honrosa presença dos prestigiosos dignatários do Poder Legislativo do continente americano, de Portugal, da Espanha, de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Príncipe e Cabo Verde.
Os senhores governadores de Estado e presidentes das Assembléias Legislativas dão realce singular a esta solenidade histórica. Os líderes foram o vestibular da Constituinte. Suas reuniões pela manhã e pela madrugada, com autores de emendas e interessados, disciplinaram, agilizaram e qualificaram as decisões do plenário. Os anais guardarão seus nomes e sua benemérita faina. Cumprimento as autoridades civis, eclesiásticas e militares, integrados estes com seus chefes na missão, que cumprem com decisão, de prestigiar a estabilidade democrática.
Nossas congratulações à imprensa, ao rádio e à televisão. Viram tudo, ouviram o que quiseram, tiveram acesso desimpedido às dependências e documentos da Constituinte. Nosso reconhecimento tanto pela divulgação como pelas críticas, que documentam a absoluta liberdade de imprensa neste País.
Testemunho a coadjuvação diurna e esclarecida dos funcionários e assessores, abraçando-os nas pessoas de seus excepcionais chefes, Paulo Affonso Martins de Oliveira e Adelmar Sabino. Agora conversemos pela última vez, companheiras e companheiros Constituintes. A atuação das mulheres nesta Casa foi de tal teor que, pela edificante força do exemplo, aumentará a representação feminina nas futuras eleições. Agradeço aos constituintes a eleição como seu presidente e agradeço o convívio alegre, civilizado e motivador. Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer. Todos os dias, quando divisava, na chegada ao Congresso, a concha côncava da Câmara rogando as bênçãos do céu e a convexa do Senado ouvindo as súplicas da terra, a alegria inundava meu coração. Era como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos.
Ulysses Guimarães foi decisivo no processo de redemocratização do Brasil depois de uma longa ditadura militar
Sentei-me ininterruptamente nove mil horas nesta cadeira, em 320 sessões, gerando até interpretações divertidas pela não saída para lugares biologicamente exigíveis. Somadas as sessões, foram 17 horas diárias de labor, também no gabinete e na residência, incluídos sábados, domingos e feriados.
Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereci. Que o bem que os constituintes me fizeram frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles. Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de reencontro.
Nosso desejo é o da Nação: que este plenário não abrigue outra Assembléia Nacional Constituinte. Porque antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa.
Autoridades, constituintes, senhoras e senhores. A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo antes a inércia ou antagonismo do Estado. O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do Universo. O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: "Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei".
O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros. O Estado autoritário prendeu e exilou a sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, liberou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.
Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-Já, que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: Mudar para vencer! Muda Brasil!"

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